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Racismo religioso e ambiental na ação do ICMBio contra terreiro de jarê no Parque Nacional da Chapada Diamantina


Fotos: Zabelê Filmes




Maria Paula Fernandes Adinolfi*

e Paula Zanardi**



Conforme denúncias comunicadas por moradores de Lençóis, município da Chapada Diamantina, Bahia, no dia 20 de julho de 2024 uma ação comandada pelo ICMBio/MMA demoliu mais de uma dezena de imóveis localizados dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina, no vale do Curupati, a menos de 10 km do núcleo urbano. A ação se deu, segundo declarado por moradores e pela Prefeitura de Lençóis, sem qualquer notificação prévia. A realização da ação e sua autoria foram comprovadas através de nota produzida pelo próprio ICMBio e postada no blog do Parque Nacional da Chapada Diamantina no dia 24 de julho.


Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca de Oxóssi,foto: divulgação



Dentre os imóveis estava o Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca de Oxóssi, liderado por Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, que estava ausente do local no momento da ação, que invadiu e destruiu completamente seu templo religioso de matriz africana.


O ICMBio, através de nota publicada no blog oficial do PARNA Chapada, como pode ser verificado neste LINK, assume a autoria da ação, alegando que se deu contra “invasões e construções irregulares” dentro da área do Parque. Sua nota também demonstra que não houve autuação prévia aos moradores, pois afirma que só haviam identificado as construções por imagens de satélite, e que quando chegaram ao local já partiram para derrubar os imóveis. Fazem a ressalva de que “nos casos em que havia pessoas residindo nas novas construções os responsáveis foram autuados e não ocorreu qualquer ação no sentido de remover os imóveis”.


Ora, o líder religioso Damaré não reside no local, e sim na cidade de Lençóis. No Curupati ele mantém há 15 anos, em um terreno que está em posse de sua família há cerca de 45 anos, apenas o seu terreiro, exclusivamente para funções religiosas, que ocorrem em função do calendário litúrgico, mas que é visitado quase diariamente por ele, como mostra o belo documentário “Profilaxia Mágica”, dos cineastas Rodrigo Rodowicz e Daniel Dourado, que ganhou premiação da Fundação Cultural do Estado da Bahia ao retratar a vida de Damaré. Por esta razão, não estava lá para defender o espaço sagrado, violado pelo Estado brasileiro, que desta forma reedita as ações racistas contra as religiões de matriz africana, que são triste parte de nosso passado histórico, quando terreiros eram invadidos por praticarem o crime de “charlatanismo”, segundo o artigo 157 do Código Penal brasileiro de 1890 e o artigo 283 do Código Penal de 1940.


Fotos: Zabelê Filmes



Observe-se a argumentação da nota do ICMBio: “Com relação a terreiros de Jarê dentro do Parque Nacional na região de Lençóis, o ICMBio tinha ciência de dois terreiros: o do Capivara, que está inserido em um processo de tombamento como patrimônio imaterial pelo IPHAN, com apoio do ICMBIO, e o de Daso, no Curupati. O que foi apontado posteriormente como um terreiro que teria sido demolido na ação de fiscalização foi um imóvel recém construído e sem ocupantes, que externamente não diferia de outros imóveis do local”. Há diversos erros e inverdades nessa argumentação, que não apresenta nenhum sinal de retratação, sequer reconhecimento do imensurável erro cometido; ao contrário, trata de defender o indefensável e reitera a postura cruel e desumana adotada na operação do dia 20 de julho. Vejamos: 


1. Em primeiro lugar, o fato do ICMBio desconhecer a existência dos terreiros não pode, absolutamente, ser usado como justificativa para sua ação. Há inúmeros terreiros de jarê localizados dentro do Parque Nacional. Para mencionar alguns, apenas no município de Lençóis: o terreiro de Pai Mussum, na Capivara, a poucos metros do terreiro Palácio de Ogum, citado na nota do próprio ICMBio; os terreiros de Dinha, Cosminho, Valdelice, todos identificados na publicação “Cantigas do Jarê”, coordenada pela antropóloga Paula Zanardi, que atesta a relevância cultural e religiosa desses espaços, dentre muitos outros. A falta dessas informações apenas mostra o quanto o órgão desconhece a realidade da área sob sua proteção, que era ocupada por comunidades tradicionais há muitas décadas, antes da criação do Parque. O jarê é uma religião profundamente ligada à natureza e grande parte das casas está na zona rural, próxima à mata, rios, pedreiras, elementos naturais sacralizados, e assim, evidentemente, muitas áreas protegidas por legislação ambiental na Chapada Diamantina fazem parte desses locais sacralizados destinados ao culto.


2. O uso da expressão “terreiro que teria sido demolido” insinua de maneira falaciosa que há dúvida quanto ao fato inequívoco da destruição perpetrada pelos agentes do ICMBio, comprovado por fotografias, vídeos e provas testemunhais.


3. O terreiro de Damaré não era “recém-construído”, conforme afirmado. A construção vinha sendo realizada, conforme testemunhas e provas documentais, há cerca de duas décadas, feita de maneira paulatina e progressiva, na medida das possibilidades financeiras reduzidas de Damaré, homem negro, pobre e sem educação formal; além da família estar na posse mansa e pacífica de sua área há cerca de 45 anos. Seria impossível confundi-lo com uma construção recente, até pela tipologia de edificação, técnicas e materiais utilizados (adobe e pedra), todos em acordo com formas tradicionais de construir e habitar na Chapada Diamantina. A informação da nota oficial, portanto, falta completamente à verdade neste quesito.


4. O terreiro tinha uma placa de identificação escrita à mão por ele, que dizia “Peji Pedra Branca de Oxóssi: A mata se levanta, poeira levanta, pedra do morro desce e a terra estremece”. Além disso, havia o crânio de um animal sacrificial colocado à sua entrada. Internamente, havia inúmeras imagens e assentos das entidades cultuadas, incluindo santos católicos. Impossível, portanto, que os agentes não tenham identificado se tratar de um terreiro. Pode-se afirmar que houve a intenção consciente e deliberada de destruir um local de culto afro-brasileiro por parte de agentes do Estado brasileiro.


Fotos: Zabelê Filmes



Assim, ao contrário do que a nota tenta fazer crer: 1) era nítido que se tratava de construção ocupada, apenas seu ocupante não estava no local no momento; 2) era nítido que não se tratava de construção nova, feita para fins de especulação imobiliária, grilagem de terras ou ocupação irregular; 3) era evidente que se tratava de um templo de culto afro-brasileiro, na posse de um morador pertencente a comunidade tradicional, que habitava a área do Parque Nacional muito antes da existência desta unidade de conservação.


Em suma, a ação do ICMBio promoveu a violação de Direitos Humanos e dos direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, garantidos na Constituição Federal, em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais  e no Decreto Federal nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais


Desde a criação do Parque Nacional, muitas comunidades tradicionais da Chapada Diamantina têm tido seus direitos violados, configurando-se o racismo ambiental quando populações que viviam de práticas extrativistas, como o garimpo e coleta de sempre-vivas, por exemplo, além da criação de gado, foram subitamente criminalizadas e marginalizadas, deixadas sem alternativas para sua sobrevivência e tendo seus modos de vida identificados a práticas criminosas. Muitos conflitos sociais foram causados com a proibição súbita do garimpo e interdição das áreas do parque, em meados dos anos 1990.


Este triste episódio que hoje presenciamos aciona gatilhos do trauma social causado pela violenta operação da Polícia Federal que se seguiu à proibição do garimpo naquele momento, ainda muito viva na memória dos moradores das Lavras Diamantinas, que foram rendidos como criminosos, com as mãos na cabeça com armas apontadas contra si e tiveram seus instrumentos de trabalho confiscados e quebrados: bateia, marrão, peneira e outras ferramentas do garimpo, que vinham sendo usadas há gerações para garantir o sustento de suas famílias. 


Se é necessário considerar os imperativos da conservação ambiental, é igualmente necessário respeitar os direitos aos modos de vida tradicionais dessas populações. Um direito não pode se sobrepor ao outro e as ações devem buscar a ponderação dos valores e primar por uma justa e transparente negociação com as comunidades que habitam as unidades de conservação, conforme prevê a própria legislação, garantindo seu direito ao devido processo legal, que inclui o contraditório e a ampla defesa – que, neste caso, inexistiram, segundo os moradores, sugerindo que houve descumprimento da legislação do próprio ICMBio, como a Instrução Normativa ICMBio nº 06/2009, que dispõe sobre o processo e os procedimentos para apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e a Portaria ICMBio nº 44/08, que regulamenta a fiscalização do Instituto. 


O racimo ambiental e o racismo religioso, neste caso, são duas faces da mesma moeda, e não têm lugar no Governo do Presidente Lula, que chegou ao poder como reação do povo brasileiro a um projeto fascista e racista, que menosprezava tanto a proteção ambiental quanto o direito dos povos e comunidades tradicionais e a liberdade religiosa. Ao contrário do que foi afirmado em um vídeo enviesado e oportunista, que procura usar o acontecimento para descredibilizar o governo e suas ações para o combate ao racismo e intolerância religiosa, esta não foi uma ação do governo Lula, não corresponde a seu programa de governo, tampouco às ações efetivas que tem sido executadas nas áreas de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Meio Ambiente para assegurar os direitos da população negra, do povo de santo e das comunidades tradicionais que habitam o entorno das unidades de conservação.


A conduta irregular de um agente público não pode ser confundida com uma intenção programática do alto escalão da gestão federal. As responsabilidades por esta ação devem ser apuradas, e uma vez constatadas as ilegalidades, devem ser exemplarmente punidas, para que os agentes que não honram seus cargos públicos não possam macular os esforços feitos pelo governo para reverter todo o passivo criado pela gestão anterior e para promover a igualdade, a liberdade e o bem viver para essas populações. 


Além disso, devem ser feitas ações imediatas de retratação, indenização e reparação a Damaré e a quaisquer outros que tenham sofrido algum tipo de arbitrariedade nessa operação, tais como ações de reconstrução dos bens destruídos, ações de fomento cultural ao terreiro, difusão sobre o jarê, educação para as relações étnico-raciais, educação para os direitos humanos.


Quanto às ações institucionais do PARNAChapada, elas devem incluir de imediato o letramento racial de seus agentes e a abertura de discussões públicas, com a presença de universidades, organizações do movimento social, lideranças do movimento negro e de religiões de matriz africana e do Ministério Público Federal, para pactuação dos protocolos de atuação junto às comunidades tradicionais que habitam dentro e no entorno do parque. Que este lamentável episódio seja um ponto de virada na forma do Parque Nacional da Chapada Diamantina lidar com suas comunidades tradicionais, tornando-se um exemplo para outras unidades de conservação brasileiras.



* Maria Paula Fernandes Adinolfi - Bacharel em História e Mestre em Antropologia Social pela USP, servidora do Iphan e atualmente Coordenadora do Conselho Nacional de Política Cultural/MinC


* Paula Zanardi - Cientista Social pela UFSC e Mestra em Preservação do Patrimônio Cultural pelo IPHAN, autora do projeto "Cantigas do Jarê"

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