O ensaio fotográfico que aqui apresentamos, foi feito no âmbito do Projeto Desapocadas: mestras do conhecimento tradicional quilombola, financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC/DF), e que permitiu três momentos de visitas ao Puris: em março de 2017, janeiro e março de 2019.
O Quilombo Puris está localizado no município de Manga, no extremo norte de Minas Gerais, e a sua população é conhecida como o "povo do Calindó".
foto #1 | dona Regina e as filhas Bia e Santa, jan 2019
Como diz Dona Germana, mulher forte e referência entre as mulheres quilombolas da comunidade:
Sempre nos reconhecemos e fomos reconhecidos como Puris, muito antes das mulheres que são troncos velhos da comunidade… se nós morou noutro lugar, não tenho lembrança não…
Em outras palavras, é também o que nos contam Dona Regina e as filhas Bia e Santa (Foto 1). Elas nos ensinam que a expressão "tronco velho" é bastante utilizada em comunidades tradicionais, uma forma de referenciar os antepassados, destacando os nomes destes até onde a memória alcança.
Quando interpelamos as mulheres do Puris sobre o significado do nome da comunidade, como fizemos para a produção do filme Relembração, apresentado em 2019 para a comunidade (Fotos 2 e 3), não temos uma resposta definitiva, mas escutamos sempre que é um nome que veio dos antigos, até antes das mulheres tronco velho.
foto #2 | exibição de filmes, jan 2019
foto #3 | exposição fotográfica, jan 2017
Conforme nos explica Dona Guilhermina, sua mãe já contava que "tudo era índio e era negro no Puris" (Foto 4), portanto, podemos inferir que o nome Puris seja uma referência, mesmo que pouco precisa, a indígenas que percorreram a região e se dispersaram em comunidades com definições diversas, o que também está confirmado no Laudo Antropológico que reconhece a existência do Puris como comunidade quilombola. Sabemos que nesta região há um predomínio do povo Xakriabá, havendo vários conhecimentos partilhados entre os quilombolas do Puris e os indígenas Xakriabá.
foto #4 | dona Guilhermina, dez 2017
Essa história de pertencimento está na memória dos quilombolas do Puris, e é destacada nos comentários sobre os traços indígenas presentes no fenótipo hoje, e desde os troncos velhos. Nas falas da comunidade é comum ouvirmos que temos “sangue indígena e sangue negro”, como nos conta Dona Marli (Foto 5).
foto #5 | dona Marli, mar 2019
O rio Calindó é outra referência fundamental para a existência do povo do Puris. Ele nasce no município de Miravânia, Minas Gerais e, no passado, abastecia perenemente alguns povoados, entre eles, duas comunidades quilombolas: Pedra Preta e Puris. Afluente do rio São Francisco, é cercado por uma vegetação formada pela Caatinga e o Cerrado, e as matas secas formam o carrasco, uma espécie de mata fechada. Hoje, o Calindó apresenta um quadro muito crítico de escassez de água, já que teve o seu curso alterado pelas fazendas intrusadas na região, o que prejudicou as populações que dependiam do rio para sobreviver. O rio Calindó também é divisor do território no Puris. O curso das águas no território dividia a comunidade em duas margens: o lado direito e o lado esquerdo.
O lado esquerdo foi palco de grandes conflitos territoriais, e neste, estão dois lugares importantes e que se tornaram marcos referenciais para os quilombolas do Puris. O primeiro é o cemitério chamado Chão Duro, de uso coletivo e que está localizado dentro de uma fazenda intrusada. O segundo é o monumento da Santa Cruz, símbolo do festejo tradicional e da religiosidade da comunidade, lugar de romarias, devoção e procissões, e sobre a qual nos conta Tia Dete, guardiã da bandeira da Santa Cruz (Foto 6). Esta cruz está fixada nas terras de uma família da região, a família de Abdias, e se estima que ela está ali há mais de 300 anos, desde o tempo do carrancismo.
foto #6 | tia Dete e a bandeira de Santa Cruz, dez 2017
O carrancismo é uma definição daqueles que são considerados tempos difíceis, "o tempo do carro de boi, tempo que tudo era feito a mão, os tempos dos antigos", como nos conta Dona Antônia, conhecida como Madrinha (Fotos 7 e 8). Com Madrinha, conversamos sempre, desde o giral de seu quintal, enquanto ela cuidava da limpeza das vasilhas e das roupas, ou manejava o gado e cuidava da roça, antes mesmo do dia amanhecer direito.
foto #7 | roça de dona Antônia (Madrinha), dez 2019
foto #8 | quintal da Madrinha, dez 2019
Trabalhadoras são todas estas mulheres do Puris, e elas sempre cumprem tarefas muito diversas. Seja Dona Miguelina (Foto 9), que trabalhou muito na roça, cuidou dos filhos e netos, se equilibrando entre os afazeres domésticos.
foto #9 | dona Miguelina, dez 2017
Ou Dona Neuza (Foto 10), toda orgulhosa com a plantação de arroz que nasceu robusta a partir de um pedacinho de terra úmida.
foto #10 | dona Neuza e sua plantação de arroz, dez 2017
Ou ainda Socorro (Foto 11), mostrando o tanque de pesca que fica ao lado do quintal medicinal que tem em casa, ao qual recorrem todos da comunidade.
foto #11 | dona Socorro e seu tanque de pesca, dez 2017
Também Patrocínia (Foto 12) que, de forma autodidata, se tornou uma hábil trancista, além de cuidar da roça e carregar de longe, equilibrando sob a cabeça, os potes necessários para assegurar a água da família, que perdeu o acesso à água encanada.
foto #12 | Patrocínia trança os cabelos de Kiu, dez 2017
Em meio às muitas histórias que ouvimos, além da origem indígena e das lembranças do antigo Calindó, uma mulher tronco velho se destaca: Lídia Gonçalves. Está presente nas memórias do Puris um episódio ocorrido no início do século XIX, quando um coronel da região, João Pereira, travara uma briga com a Puri Lídia Gonçalves, na tentativa de usurpar terras localizadas no Chão Duro, cemitério tradicional do Puris. Lídia recorreu à justiça do Rio de Janeiro e mesmo ganhando a causa, perdeu as terras para o coronel que, na época, se recusou a entregar a propriedade.
Dona Lídia era irmã de Canuta, que era casada com Francisco Nunes Barbosa, conhecido por Chico Vaqueiro, apelido que lhe foi atribuído devido à profissão. Contam as mulheres mais velhas que, mais uma vez, Lídia gastou tudo que tinha em audiências para impedir que as terras do cunhado, Chico Vaqueiro, fossem parar nas mãos do coronel. Recorreu mais uma vez à justiça do Rio de Janeiro, que novamente lhe garantiu a posse legal das terras, mas, ainda assim, João Pereira ficou com a área, descumprindo a determinação.
Lídia é reconhecida por todos como uma mulher guerreira e de muita coragem. Chico Vaqueiro era pai de Umbelina Nunes, Ernesta Nunes, Leodoro Nunes, Patronilio Nunes, Gregório Nunes, Tomé Nunes e de Servina e Bonifácio, filhos fora do casamento. Portanto, a perda das terras repercutiria em toda uma geração do Puris. Contam que Lídia juntou dinheiro durante toda a vida e, por fim, conseguiu comprar uma parte da terra localizada na margem direita do Rio Calindó, é ali que está situada hoje a vila central do Puris.
No início do século XX, Dona Lídia era proprietária de uma extensão territorial de 106,96 ha. Já bastante debilitada por doença e pela idade avançada, temendo que as terras caíssem nas mãos de outros, mandou buscar um "escrivão na Inhuma", a atual Inhandutiba - MG, e registrou quatro dos sobrinhos como herdeiros: Umbelina Nunes, Gregório Nunes, Tomé Nunes e o sobrinho neto José Gonçalves, filho de Patronilio. Cada um recebeu 26,74 ha. Lidía Gonçalves criou os quatro sobrinhos e, por essa razão, escolheu que eles herdassem as terras. Neste mesmo lado, muitas pessoas foram feitas "agregadas das fazendas". Entre essas pessoas, Eusébio Marques Farias que é pai de Augusto, Faustino, José, João, Faustina e Maria. Também era agregada de fazenda a parteira Maria de Oceno, além da mãe de Tia Martiliana e Tia Agostinha (Foto 13), ambas que também seguiram a profissão de parteira.
foto #13 | tia Agostinha, mar 2017
A família de Eusébio mora hoje no lado esquerdo do Rio Calindó, já Augustinha permaneceu até o fim da vida como "agregada em terra de fazendeiro", com a filha Zélia (Fotos 14) e os netos.
foto #14 | a casa de Zélia, jan 2019
Sem dúvida, o conflito entre Lídia e o coronel João Pereira é uma narrativa de opressão, que permite reconhecer a usurpação do território como processo histórico recorrente na comunidade do Puris, que tem efeitos até hoje. Entretanto, ao contar essa história, as mulheres do Puris a apresentam como narrativa exemplar de uma "mulher desapocada", aquela mais antiga que a memória permite alcançar, a resistência de uma mulher tronco velho.
Para as mulheres do Puris, a beleza está associada à desenvoltura, capacidade de comunicação, de resolver problemas e executar compromissos, de não ter vergonha de se apresentar em lugares públicos e falar com qualquer um de forma descontraída, sem se submeter, inclusive, a imposições masculinas. E isso é ser “mulher desapocada”! Por mais que pudessem conduzir ao desempoderamento, as opressões sofridas por mulheres negras, quilombolas, indígenas e de outras comunidades tradicionais, acabam por ressignificar as relações identitárias e de pertencimento, ao acionar uma compreensão compartilhada de que a beleza tenha como característica elementar o desapocamento. Nesse sentido, a concepção de beleza entre as mulheres do Puris, está na contramão do padrão hegemônico que associa o belo ao recato e à submissão, percebidos como "bom comportamento" e atitude feminina desejável. É o oposto do recato e da submissão, estando associada às características de mulheres “desapocadas”.
Com este ensaio fotográfico, esperamos que os/as leitores/as reconheçam em cada uma de nossas narradoras fotografadas, as marcas ancestrais que já impulsionavam a Puri Lídia Gonçalves.
Fechando o ensaio fotográfico, apresentamos Sirlene Barbosa, pesquisadora quilombola do Puris, formada mestre pela Universidade de Brasília e que compõe a equipe de curadoria deste trabalho.
foto #15 | Sirlene e Zélia, dez 2017
A Foto 15, de Sirlene com Zélia, expressa os vínculos político-afetivos e a alegria espontânea que caracteriza as alianças nesta terra de mulheres.
Sirlene Barbosa Correa Passold | Quilombo Puris, Minas Gerais, Brasil
Mestra em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais.
Cristiane de Assis Portela | Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Doutora em História e professora do Departamento de História, do Instituto de Humanas (IH) da UnB.
Alice da Silva Cruz | Centro de Memórias do Elefante Branco, Brasil
Especialista e bacharel em História.
Anna Lorena Morais Silva | Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da UnB.
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