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Foto do escritorMagdalena Almeida

CONHECIMENTO LOCAL E ENSINO DE HISTÓRIA: Reflexões sobre usos do Patrimônio Cultural



Ao tratar de Cultura, como de História, podemos nos reportar a Certeau (1995, p. 221-232), lembrando que sempre falamos a partir de um certo lugar: o nosso. Uma pessoa sempre tem sua fala influenciada pelas suas experiências. Sobre formação acadêmica, mais uma vez, Certeau inspira: tratamos de universalismo fictício, de generalizações que têm por base nossas impressões, não nossas certezas.


Do ponto de vista da autoridade da fala, Certeau diz que ninguém o autorizou a falar de cultura. Sem pretender qualquer comparativo quanto ao meu lugar social ou de fala, não me sinto especialista ao falar sobre História, menos ainda sobre patrimônio. Não me sinto autoridade, portanto. Isso me deixa à vontade para falar segundo o meu parecer, sem intenção de esgotar a temática ou mesmo apresentar conceituações indiscutíveis.

Até porque é a reflexão que pretendo ao trazer algumas impressões de vivências na área de formação de professores de História e no relacionamento com praticantes, tratados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como detentores de bens patrimoniais. Com base em Certeau, para organizar meu texto, destacarei três desdobramentos: um objetivo, uma especialização técnica e algumas situações pernambucanas, vivenciadas pela observação, em pesquisa informal, e como docente, em sala de aula, numa Licenciatura em História.

Essas ponderações iniciais servem para conduzir quem lê aos propósitos que tracei para este texto, de pensar patrimônio cultural a partir de seu uso. Considero uma forma de uso a prática em sala de aula que, pretende-se, influenciará as experiências profissionais dos atuais estudantes e, novamente pretendo, deverá contribuir para o cuidado e a preservação de memórias culturais, estimulando o conhecimento sobre valores locais. Patrimônio cultural é aqui considerado, basicamente, a partir da noção oferecida pelo IPHAN:


A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 216, ampliou o conceito de patrimônio estabelecido pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, substituindo a nominação Patrimônio Histórico e Artístico, por Patrimônio Cultural Brasileiro. Essa alteração incorporou o conceito de referência cultural e a definição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de caráter imaterial. A Constituição estabelece ainda a parceria entre o poder público e as comunidades para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro, no entanto, mantém a gestão do patrimônio e da documentação relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública.

Falo com o intuito de provocar reflexões baseadas na temática do patrimônio cultural em suas relações com o conhecimento local e o Ensino de História. Tenho a impressão, portanto, de destinar meu discurso a um público definido que, no entanto, não tem ainda uma definição sobre o que fará com ele. O que não o invalida ou anula, apenas projeta possibilidades de reflexão sobre patrimônio e cultura. Antes de mais, gostaria de tecer novas considerações.


Acredito no discurso sobre patrimônio e na sua importância social, especialmente como fator contributivo para o cuidado e a preservação de objetos de memória, importantes para os diversos coletivos com os quais estejam envolvidos. Ao falar em objetos, nossa tendência é recorrer a imagens como exemplos, cuja concretude ajuda a visualizar bens construídos, seja pela engenharia, pela arquitetura ou pela arte.


Façamos uma síntese, proponho, e pensemos arte como lugar de criação; de construção, quem sabe? Mas também de liberdade. Não que a engenharia e a arquitetura não o sejam: as memórias individuais e coletivas são fundamentos para a criação nessas áreas. Mas a arte traz em si o emblema da liberdade. A memória, por outro lado, traz em si os mitos do passado, dentre eles o maior de todos: a verdade sobre o que se recorda ou documenta. Não trataremos de verdade aqui, mas de criação humana historicamente preservada, ainda que não tenha materialidade e se caracterize por um modo de fazer ou viver.


Em muitos sentidos, a noção de patrimônio sintetiza preservação de memórias, referindo-se à ausência de fazeres de tempos passados e ao desejo de os mantermos presentes. Tratamos de bens que podem ser tomados como patrimônio oficial, criado ou reconhecido institucionalmente, pelo Estado nacional. Patrimonializado. Tratamos do patrimônio que é sentimento de apropriação, por pessoas, comunidades ou instituições, de bens ou práticas culturais. Neste caso, estaremos falando de representações simbólicas que têm sua existência contemporânea (que tratarei como presentificação) garantida por humanos que a usam, reproduzem, repetem, registram, ensinam ou, simplesmente, a guardam e colecionam. Registrando, guardando e colecionando, garante-se o existir no presente, provocando no pretenso passado um permanente devir. Mas ele é sempre passível de novas interpretações. De criação, portanto. Pretendo capturar o existir do bem patrimonial e estimular seu uso pelas comunidades, também a partir de atividades de sala de aula, como conteúdo da História; não apenas no ensino superior, como em turmas de educação escolar, no ensino fundamental, ou não escolar, em suas infinitas possibilidades, num processo de reconhecimento dos valores de memória contributivos à formação cultural de uma localidade, uma cidade, um município.


Não há como distinguir, de modo simplificado, cultura, arte e patrimônio. Mas defendo suas múltiplas relações, nem sempre explícitas. Defendo a ideia de que, ao chamado patrimônio, só é dado sentido, para determinada comunidade, quando há uso. À sociedade e ao Estado, competem o cuidado e a preservação que protegem das perdas de memórias. No caso do Brasil, que o digam os artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Mas nem sempre o uso existe. E o Estado tem se revelado, com o passar dos tempos, cada vez mais incapaz de cuidar da pluralidade e da multiplicidade das memórias representadas pelas práticas e fazeres culturais, apesar da aproximação com as comunidades detentoras e dos esforços de muitos servidores públicos, mobilizados em defesa das memórias patrimoniais.


Em não existindo uso, a preservação estatal poderá até ocorrer, através do tombamento ou do registro de bens, mas em muitas situações cairá no vazio da falta de atenção e cuidado cotidianos, necessários ao universo de bens existente em território nacional. Daí eu pensar que o uso, cuja conceituação nos remete à ideia de função e funcionalidade, não dever, não poder ou não precisar, ser único, nem no passado nem no presente. Tampouco precisa ser o mesmo, ao longo de sua existência, para as diversas gerações. O uso tem dinâmicas que necessariamente o alteram, provavelmente na direta relação com a mudança de pessoas, novas e diferentes nos diversos tempos e lugares de seu existir, quanto a interesses e pretensões que, em suas diferenças, se aproximam pelos valores das memórias. Se o uso é modificado, se a função é alterada, garante-se a preservação do bem, mas não se garante a permanência das mesmas memórias, senão através de sua materialidade, importante motor que aciona lembranças.


Na presentificação, pode-se identificar pelo menos dois caracteres: o representativo e o utilitário. Considerando as representações simbólicas, os objetos de memória podem remeter à visão de um objeto utilitário, um utensílio qualquer, para um determinado bem. O que digo é que, qualquer que seja a forma de uso, estaremos falando em representação simbólica. Caso se trate de um traje, de um alimento, uma escultura ou outro objeto qualquer, inclusive as edificações e as alegorias. Lembremos o roteiro do encerramento da Olimpíada Rio 2016 ou a Feira de Produtos Afro, ocorrida a 27 e 28 de agosto de 2016 no Largo do Paissandu, no centro da cidade de São Paulo. No primeiro caso, o patrimônio oficial atualizado, através do canto do Hino Nacional por um sambista como Martinho da Vila ou a projeção da Bandeira Nacional, representada por uma ilustração, onde crianças, vestidas de branco, remetem à configuração das estrelas na bandeira brasileira. Neste caso, abrindo o espetáculo, além de representação simbólica, vimos bens oficiais, reconhecidos pelo Estado brasileiro; na sequência, viu-se apresentações musicais com releitura de bens patrimoniais, como a música do maracatu de baque solto, reinterpretada pelo som da Orquestra Santa Massa. No Largo do Paissandu, representações simbólicas de ancestralidade africana da comunidade afro-brasileira são reinterpretadas e integradas ao universo do consumo, seja através da impressão em tecidos, camisetas e outros objetos para venda, da gastronomia ou do samba, expressão musical utilizada, naquele momento, como referência para atrair e concentrar pessoas.


Estas são formas de utilização interessantes para um bem patrimonial, que atendem a algumas das dimensões da noção de cultura: primeiro, a utilização da representação simbólica como tal. Em seguida, a mesma representação utilizada como prática de cidadania, pelo símbolo oficial (hino e bandeira nacional) ou pelo reconhecimento comunitário do bem (símbolos de afro-brasilidade, como imagens tribais, cabelo crespo trançado ou solto, vestimentas com caracteres tribais). Um terceiro aspecto a ser considerado é a comercialização de produtos referenciados nas representações simbólicas. Esta última, é uma importante dimensão das relações entre cultura e patrimônio, quando trabalho e emprego não são acessíveis a todos: a necessária geração de trabalho e renda, mesmo que em relações informais de trabalho, cujo debate não se pretende neste texto.


Diante dessas digressões conceituais, sigo agora no preparo de quem lê para exemplos de trabalhos em sala de aula, feitos por estudantes de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco – UPE, em Nazaré da Mata, município da Zona da Mata Norte do Estado, distante 66 Km da capital, Recife, com pouco mais de 30 mil habitantes, distribuídos entre as áreas urbana e rural. A UPE irradia sua atuação, nessa região, por diversos municípios polarizados por Nazaré da Mata, como Recife, Olinda e Feira Nova, por exemplo.



A figura 1 apresenta aspecto do Parque dos Lanceiros, conhecidos como caboclos de lança, personagens do Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural. As esculturas acolhem moradores e visitantes, numa representação que adota essa expressão patrimonial como referencial de identidade, já que Nazaré da Mata é tida como Terra do Maracatu ou Capital Estadual dos Maracatus. Essa imagem ajuda a entender o ambiente onde se situa a UPE e orienta a pensar sobre o lugar de debate que se pode instalar sobre patrimônio, especialmente na Licenciatura em História. O Projeto Pedagógico do Curso, na instituição, inclui um componente obrigatório, chamado História e Patrimônio. No segundo semestre de 2017, foi ministrada por mim como disciplina eletiva.


Lembremos o título do capítulo de Certeau que serve de referência para fundamentar minhas ideias agora: o lugar onde se discute a cultura. No seu texto, o autor traz uma estrutura e um discurso. Eu me inspiro em alguns elementos do seu texto, mas não copio integralmente a lógica do seu discurso: a estrutura por ele apresentada é condutora do meu pensamento.


Lembremos que, ao falar de patrimônio, uma infinidade de desdobramentos pode ser identificada. Nesta infinidade, está uma base conceitual que se refere à materialidade e à imaterialidade dos bens patrimoniais. Teoricamente, o bem que possui concretude, é tangível ou material. O que não a possui, é intangível ou imaterial. Essa é a base referencial para os debates sobre o patrimônio no Brasil, desde a época de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, nos anos de 1930, fundante para o IPHAN atual. Essa base referencial, até meados dos anos de 1960, tomava a materialidade do bem, suas características físicas e estilísticas como principais elementos de historicidade para preservação e reconhecimento pelo Estado. Isso significa que as obras de pedra e cal eram privilegiadas em relação a saberes tradicionais, canções, lendas, práticas simbólicas, dentre outros. Mário de Andrade, nos anos de 1950, e sua Missão de Pesquisas Folclóricas, promoveu a importância da imaterialidade dos bens, o que contribuiu para propiciar espaço para o debate e a institucionalização do patrimônio nacional, em termos materiais e imateriais.


Lembremos que o reconhecimento do Estado brasileiro para um bem material é resultante de um tombamento e, para um bem intangível, de um registro. Tombamento e Registro são processos que sistematizam o bem, institucionalizando-o, segundo normas técnicas definidas pelo IPHAN.


Atualmente, as conceituações que tratam sobre patrimônio cultural apontam para a interdependência entre o concreto e o não concreto. Trata-se de um conceito que reconhece o elo entre o material e o imaterial, considerando a construção histórica de cada bem.


Observa-se que bens como o Frevo, por exemplo, reconhecido como Patrimônio do Brasil, em 2007, e, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, em 2012, têm em si, sua própria diversidade, multiplicidade e potencialidade, desdobrando-se em outras formas de expressão que demandam conhecimento diversificado, inclusive pesquisa (histórica e historiográfica) e formação, cabíveis nos conceitos de material e imaterial.



Senão, vejamos, em relação ao Frevo simbolizado: sua representatividade está na música, na dança e nas agremiações, com suas alegorias e adereços. O Frevo é referencial discursivo e imagem para lembrar Recife, Pernambuco, Brasil, e, como bem patrimonializado, é salvaguarda, Comitê e Paço. Se, a cada um desses itens, se oferecer um desdobramento, teremos símbolos mais conhecidos: sombrinha – imagem do carnaval que circula pela cidade do Recife por todo o ano, dando nome a empresas locais ou a própria palavra Frevo. Na música, o Frevo ocupa músicos, regentes e orquestras, tocando frevo canção, frevo de bloco, frevo de rua. Na dança, envolve passistas, passos, Escola de Frevo e grupos de dança. Nas agremiações, o Frevo se traduz em clubes de frevo, clubes de bonecos, blocos líricos. Para os desfiles, as alegorias, com a criação de figurinos, adereços e de equipamentos (carros) alegóricos.


Como salvaguarda, por meio da pesquisa, o Frevo é uma manifestação que envolve pessoas, em diversas atividades profissionais. Nesse sentido, demanda atividades de formação cultural, para aprender a música, a dança, a se reunir e reivindicar como grupo, promovendo ação política voltada ao seu segmento, como prática cultural, o que representa salvaguarda do bem: preservação para o presente de muitas comunidades praticantes e influência no planejamento de políticas públicas de cultura, quando as heranças familiares são insuficientes para garantir preservação e posteridade. Como exemplo de forma de expressão, o Frevo é um bem patrimonial que abriga uma complexidade. Esta, envolve o material e o imaterial, de modo permanente, a cada forma de uso que se observa.



Pode-se dizer que todo bem material tem uma imaterialidade e as diversas formas de uso constituem essa imaterialidade; além disso, com o uso no presente, há possibilidade de criação, baseada no bem original. A tapioca rendada, mencionada na figura 3, é um exemplo. Feita à base da goma de mandioca, já foi recheada com a polpa ralada do coco maduro. Hoje, pode também ser consumida com outros recheios. Recheá-la e revesti-la com raspas de queijo é criação e permite ao bem uma nova aparência, que remete a novos sabores, com um nome que sinaliza para a produção de renda, outro fazer patrimonial.


Todo bem imaterial produz materialidades, objetos concretos, ainda que com temporalidade existencial efêmera. As imagens das figuras 1 a 4 dão conta de parte dessa materialidade. No caso da gastronomia, há um caráter transitório quanto ao prato produzido. O que se considera bem patrimonial é o modo como é feito cada prato e os insumos utilizados para essa feitura. Trata-se de uma prática cultural com movimento próprio que carrega em si memórias ancestrais e modos de fazer de tempos imemoriais, ainda que reconhecidos, registrados e atualizados pelo uso. E nada impede que essas atualizações pelo uso se reportem ao sagrado, como as práticas e rituais religiosos, por exemplo.



Algumas situações pernambucanas

Esse subtítulo poderia ser atribuído ao anterior, mas especifico, aqui, as relações de ensino e aprendizagem, pelo seu caráter de formação de pessoas e pelas possibilidades que o Ensino de História viabiliza, desde que garantida uma certa flexibilidade ao currículo, destacando aspectos culturais pelo seu caráter historicizante e pelos valores de memória que lhes são inerentes, especialmente quando estão próximos daqueles que aprendem, garantindo uma visualização concreta de cada objeto estudado e a criação de categorias de análise que possibilitam uma abordagem crítica ao pensamento dos indivíduos envolvidos.


As experiências de sala de aula são fontes para produção de conhecimento pouco registradas. Trazê-las, significa compartilhar experiências, ao mesmo tempo em que é uma forma de dizer que as práticas nas salas de aula de História são campos abertos para a pesquisa, registro e reflexão. São reconhecimento de que salas de aula são espaços para criação, descoberta e auxiliam na formação cultural, em termos de cidadania, orientando para um viver crítico e reflexivo dos sentidos históricos de cada existir humano. Para esse texto, destaquei quatro trabalhos apresentados na eletiva História e Patrimônio, mencionada anteriormente: três, por trazerem análises distintas que giram em torno de um mesmo tema, a farinha, e o quarto, pela reflexão sobre Educação Patrimonial.


Diz a ementa da eletiva História e Patrimônio – Educação Patrimonial, ministrada pela autora na Universidade de Pernambuco, em Nazaré da Mata, Pernambuco, em 2017.2:


Considerando como patrimônio um tipo de conhecimento histórico que inclui novas compreensões sobre diversidade e identidades culturais, este componente deve promover debates sobre a educação patrimonial e suas possibilidades na prática docente, especialmente em se tratando do historiador. Pretende-se sinalizar, com atividades práticas, vínculos entre história e memória, identificando potencialidades para o processo de ensino e aprendizagem, com ênfase na conjunção entre pesquisa e ensino na educação básica, incluindo campos para educação não escolar.

O propósito da eletiva História e Patrimônio não era apenas o conteúdo vivenciado em sala de aula, em função do limite de tempo do componente curricular, de apenas um semestre letivo, com trinta horas de aula. A proposta foi valorizar uma experiência de campo que cada estudante pudesse viabilizar. Na faculdade, em encontros semanais, dentro do calendário acadêmico, o semestre transcorreu com apresentações conceituais, de acordo com o programa do componente. Paralelamente, os estudantes deveriam escolher livremente, nos seus espaços sociais, um grupo para trabalhar, onde pudessem conversar sobre bens patrimoniais próximos do seu viver. Como resultado dessa prática, considerada sala de aula, ainda que não escolar, cada estudante deveria apresentar um artigo em que discorresse sobre a vivência, avaliando os diversos aspectos que a envolveram. O alcance desse objetivo ficou claro pelo conteúdo dos trabalhos apresentados. Trata-se de formação de professores e preparação de profissionais para o Ensino de História.


O que dizem os estudantes sobre suas vivências e o que nós, professores, conhecemos de suas vidas é uma questão que tornou-se estratégia adotada nessa sala de aula para identificar o modo como se pode valorar o viver de cada estudante e incentivar suas melhores práticas: foi preciso obter dados do cotidiano. Dessa forma, acreditei em um despertar para o interesse pelo que está próximo, o que se constituiu especialmente importante, quando o objeto dessa proximidade abrigava historicidade e, com isso, constituía-se bem patrimonial, ainda que sem reconhecimento oficial.


Ao optar por usar uma experiência como forma de avaliação que incluiu a criação de salas de aula com pessoas de diversas comunidades, acreditei no direcionamento sugerido por Lucien Febvre, quando recomendou que estudantes de História virassem resolutamente as costas para o passado e observassem o mundo ao seu redor. Lefebvre sugeria a estudantes a quem conferenciava, em 1941:


virem resolutamente as costas ao passado e antes de mais vivam. Envolvam-se na vida. Na vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua variedade. (...) É tudo? Não. Não é mesmo nada, se vocês continuarem a separar a acção do pensamento, a vida do historiador e a vida do homem. Entre a acção e o pensamento, não há separação (FEBVRE, 1952, p. 56).

A ideia inicial era o preenchimento de formulários de inventário participativo proposto pelo IPHAN dentro do Programa Mais Educação, do governo federal. Os estudantes, contudo, visualizaram outras possibilidades que trataram de identificar bens patrimoniais, caracterizá-los e conversar sobre eles com pequenos grupos de pessoas, criando uma forma de produção de conhecimento, sem preocupação em estabelecer uma relação formal de ensino e aprendizagem, mas principalmente com o intuito de fortalecer a ligação da comunidade com os bens que lhes são mais próximos, estreitando laços ancestrais, em alguns dos casos.


Assim sendo, entre atividades teóricas, que incluíram palestras e vídeos, surgiram três experiências que apresentaram fortemente a relação com a mandioca, na produção de farinha do município de Feira Nova. A mandioca é um bem que faz parte da realidade histórica e contemporânea do povo brasileiro que permite estabelecer relações com o passado colonial e as populações então existentes. Trata-se de um bem patrimonial diretamente vinculado aos costumes e à história brasileiros, em muitas regiões do país. Ao Nordeste, é atribuída uma relação mais próxima com a farinha de mandioca, insumo básico para o preparo de muitos alimentos, associada ao consumo de feijão, pura ou para elaborar farofa ou pirão, que complementam refeições com proteínas animais diversas, como boi, peixe ou frango. Mas dela se extraem produtos como a goma, a massa ou o polvilho, base para alimentos de diversas formas, inclusive biscoitos e pães.

A Casa de Farinha como patrimônio cultural.

O trabalho de Jacira Marilene da Silva trouxe uma comunidade produtora, a Casa de Farinha de Inácio Zumba, que há mais de dezessete anos faz parte das memórias da comunidade Poças de Cima. O texto fala das atividades realizadas, assim como de sua dimensão física e dos problemas financeiros vivenciados. Descreve a forma como a farinha é produzida, destacando as dificuldades financeiras vividas pela comunidade de agricultores, da criação da casa de farinha até a atualidade.


Jacira diz, no trabalho que intitulou O bem cultural da comunidade Poças de Cima, que a cidade de Feira Nova caracteriza-se como “a terra da farinha”, título advindo desde sua povoação. A cultura da mandioca e da farinha na região é bastante forte, visto que a maioria dos moradores da zona rural cultiva a raiz, daí a fama que a cidade carrega. Tanto na zona rural, como dentro da cidade, se constituem pequenas e grandes casas de farinha. As maiores podem comportar até cinquenta vagas de trabalho, podendo chegar a produzir diariamente sessenta toneladas do produto.


Jaithanya W. dos Santos descreve seu objetivo, no texto, a partir da necessidade de compreender a importância, o significado e o que a casa de farinha representa para essas pessoas. Diz que foi realizada uma pesquisa de campo com alguns moradores da Rua do Cajá. Pretendeu compreender a perspectiva dos entrevistados com relação ao patrimônio cultural estudado e colaborar com o aprendizado sobre o conceito em questão. Como Jacira, embora mencione as pessoas, não traz depoimentos que corroborem seu testemunho. Destacou a Casa de Farinha da Rua do Cajá, localizada no centro da cidade de Feira Nova. Preocupada, ao longo de seu trabalho, em descrever o modo de produzir farinha de mandioca e as mudanças que o envolvem, ilustra seu texto com um poema de cordel, de autoria de J.M.SOARES, publicado pela Cactus Cordelaria, em 2013, chamado Feira Nova (terra da farinha):


Quero dizer do respeito

Que nutro aos antepassados

Viajando na história

Descobrir os seus legados

São gente de valentia

Desconhecem covardia

Por isso, admirados


Eram as casas de farinha

Do tipo rudimentar

O trabalho era braçal

Pra roda movimentar

Não tinha triturador

Pois não havia motor

Para a massa preparar


Hoje as casas de farinha

Já estão mecanizadas

Os seus fornos são elétricos

A vida é facilitada.

Quase tudo é automático

O serviço ficou prático

Melhorando a farinhada.

Rejoely Joanita de Souza escreveu sobre a Festa da Farinha na cidade de Feira Nova. No seu texto, como desdobramento da preocupação com a farinha como bem patrimonial, a estudante destacou questões econômicas e políticas, que envolvem a produção de uma festa, nas dimensões apresentadas e os usos do bem para fins comerciais e partidários, com diferentes formas de apropriação, algumas delas criticadas no texto.


Por último, dentre os textos aqui trazidos, o trabalho de Rebeca Vitória de Lima Fontes discute sobre a importância da Educação Patrimonial, tomando a cidade histórica de Olinda como seu referencial. Rebeca fala da Educação Patrimonial como necessidade, ao mesmo tempo em que destaca que o acesso do estudante, de um modo geral, ao conhecimento sobre os bens patrimoniais que lhe são próximos é fundamental, mas inexistente no universo trabalhado. Baseada numa consulta feita a trinta e oito estudantes no ensino médio de uma escola particular local, sem definição de faixa etária, questionou-os sobre o que é patrimônio, quais patrimônios da cidade conheciam e qual a importância do patrimônio. Suas observações a levaram a acreditar que, embora o discurso sobre patrimônio seja corrente, como parte das falas dos estudantes, as respostas eram, no geral, automáticas e não refletiam um sentimento de pertencimento, relacionando-os com os bens patrimoniais de Olinda. Para Rebeca, foi perceptível esse desconhecimento, até em estudantes que iriam tentar o curso de História para a faculdade. A maioria apresentou dificuldade em responder às questões colocadas, atribuída aos poucos profissionais que se interessem pela questão patrimonial, dificultando o ensino da História e a sua prática.


O que fica, relativo ao uso do bem patrimonial e as relações com o Ensino da História que este texto tenta evidenciar, é que há um universo de possibilidades concretas que pode ser oferecido a estudantes como forma de contribuir para a compreensão da história local, a partir dos desdobramentos que um profissional da História, no exercício do seu ofício, saberá proporcionar, explorando aspectos contextuais que envolvem a cultura, a política, a economia, as memórias, o cotidiano, enfim. A liberdade e o estímulo ao questionamento, aliados à observação do bem patrimonial que está próximo, pode garantir não apenas preservação e cuidado, mas principalmente conhecimento e apropriação de memórias que, sem qualquer forma de uso, serão diluídas pelo tempo e esquecidas pelas novas gerações.


* Publicado originalmente em CAVALCANTI, Erinaldo et al. História - demandas e desafios do tempo presente. São Luiz, EDUFMA, 2018, p.289-303

Referências


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